Iniciámos hoje a Semana da Leitura no nosso agrupamento com a atividade "Todos a Ler", propondo a leitura em sala de aula de um texto.
Na ESFA foram estas as nossas escolhas:
Na ESFA foram estas as nossas escolhas:
Sugestão de
leitura para o Ensino Secundário
Aprendiz de Viajante
Um
dia li num livro: “Viajar cura a melancolia.”
Creio que, na altura, acreditei no que lia. Estava doente, tinha quinze anos. Não me lembro da doença que me levara à cama, recordo apenas a impressão que me causara, então, o que acabara de ler.
Os anos passaram – como se apagam as estrelas cadentes- e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto, persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação.
A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar. Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos, mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vasta noite… Avancei sempre, sem destino certo.
Tudo começou a seguir àquela doença.
Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti. Fui em direção ao mar. Segui a rebentação das ondas, apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude. Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha; vi crepúsculo e noites sobre o rio, amei a existência.
Dormia onde calhava: no meio das dunas, enroscado no tojo, como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo, em celeiros, garagens abandonadas, uma cama…
E quando regressei, regressei com a ânsia do eterno viajante dentro de mim.
Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida, se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidianas. Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um modo de vida. Caminha, assim, com a leveza de quem abandonou tudo. Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma, no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.
A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que os outros viajantes, ao passarem pelos mesmos lugares, veem.
O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo, é único, não se confunde com nenhum outro.
Viajar, se não cura melancolia, pelo menos purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil; e o corpo reencontra a harmonia perdida – entre o homem e a terra. O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz, os astros, as águas e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas.
Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada; sabe que o homem não foi feito para ficar quieto. A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue, mata-lhe a alma – estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água. Vive ali, e canta – sabendo que a vida não terá sido um abismo, se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele, o una de novo ao Universo.»
Creio que, na altura, acreditei no que lia. Estava doente, tinha quinze anos. Não me lembro da doença que me levara à cama, recordo apenas a impressão que me causara, então, o que acabara de ler.
Os anos passaram – como se apagam as estrelas cadentes- e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto, persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação.
A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar. Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos, mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vasta noite… Avancei sempre, sem destino certo.
Tudo começou a seguir àquela doença.
Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti. Fui em direção ao mar. Segui a rebentação das ondas, apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude. Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha; vi crepúsculo e noites sobre o rio, amei a existência.
Dormia onde calhava: no meio das dunas, enroscado no tojo, como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo, em celeiros, garagens abandonadas, uma cama…
E quando regressei, regressei com a ânsia do eterno viajante dentro de mim.
Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida, se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidianas. Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um modo de vida. Caminha, assim, com a leveza de quem abandonou tudo. Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma, no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.
A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que os outros viajantes, ao passarem pelos mesmos lugares, veem.
O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo, é único, não se confunde com nenhum outro.
Viajar, se não cura melancolia, pelo menos purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil; e o corpo reencontra a harmonia perdida – entre o homem e a terra. O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz, os astros, as águas e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas.
Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada; sabe que o homem não foi feito para ficar quieto. A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue, mata-lhe a alma – estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água. Vive ali, e canta – sabendo que a vida não terá sido um abismo, se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele, o una de novo ao Universo.»
Al Berto “O Anjo Mudo”
Sugestão de leitura para o 9º ano
Encantamentos
-
Para que serve a poesia? Esta é uma daquelas questões que, cedo ou tarde, todos
os poetas enfrentam. A resposta mais frequente, mais falha de imaginação e de
verdade, assegura que a poesia não serve para nada. Alguns poetas, em especial
os portugueses, acrescentam a seguir que também a vida não serve para nada,
etc. […]
Na origem, a poesia era uma disciplina da
magia. Servia para encantar. Continua a ser assim, embora, no sentido literal,
poucas pessoas ainda exercitem essa antiquíssima arte. Uma tarde, em Benguela
conheci uma das derradeiras praticantes. Almoçava com amigos, e amigos de
amigos, num desses quintalões antigos, carregados de frutos, e de boa sombra,
da cidade das acácias rubras. A determinada altura escutei um sujeito que se
referiu a uma tal Dona Aurora:
- A velha receita poesias.
-
Recita - corrigi. O homem, um oficial do
exército, encarou-me, irritado:
-
Não senhor! Receita! Dona Aurora receita poesias. Resolve problemas de amor,
amarrações, mau-olhado, tudo com versinhos.
Fiquei
interessado. Anotei o endereço da curandeira num guardanapo e na manhã seguinte
bati-lhe à porta. Dona Aurora morava na Restinga, num casarão, em madeira,
muito maltratado. A velha senhora, miúda, muito magra, vestia de cor de rosa.
Toda a sua força parecia residir na cabeleira, a qual mantinha uma vigorosa
rebeldia juvenil. Convidou-me a entrar. Móveis dos anos 50, muito gastos.
Estantes carregadas de livros velhos. Aproximei-me. Poesia, e mais poesia:
Florbela, Camões, Vinícius, José Régio, Sophia, Drummond, Manuel Bandeira, tudo
misturado, num bem-aventurado desrespeito a fronteiras políticas, estéticas e
ideológicas. «O meu marido sempre gostou de poesia», justificou-se: «Eu, menos.
Foi só depois de ele morrer, há 30 anos, que descobri o poder dos versos.»
Acontecera
um pouco por acaso - contou. Uma tarde deu-se conta de que certos sonetos
parnasianos (os mais trabalhosos) a ajudavam a vencer a insónia. Mais tarde,
que João Cabral de Melo Neto, a partir de «O cão sem plumas», era muito eficaz
no combate à cefaleia. Pouco a pouco foi desenvolvendo um método. Combatia a
prisão de ventre lendo alto a Sagrada Esperança. Mantinha o quintal livre de
ervas daninhas, percorrendo-o, ao crepúsculo, enquanto soprava devagar «O
guardador de rebanhos».
Numa cidade pequena não tardou que tais
excentricidades lhe trouxessem, primeiro inimigos, e depois devotos seguidores
e pacientes. Hoje, ela recebe a todos, ricos e pobres, na sala onde me recebeu
a mim.
Ouve as suas queixas, levanta-se, percorre as
estantes, e regressa com a solução. «Quem me procura mais são mulheres
querendo reconquistar o coração dos maridos. Recomendo que lhes murmurem,
enquanto dormem, algum Neruda, às vezes Camões, outras Bocage.»
Dona
Aurora não aceita dinheiro pelos serviços prestados. «Não sou eu quem cura»,
explicou-me, «é a poesia».
José Eduardo Agualusa (revista
Ler nº 113, maio 212)
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