Temos uma vida
de rotinas — de gestos e hábitos que marcam o nosso território, como um véu que
vai caindo sobre nós e filtra a luz com que vemos.
Mas há pelo menos uma, duas, três vezes na
vida — mais se procurarmos —, em que algo acontece: um rasgão no véu da rotina,
que deixa entrar o caos, a luz, os fantasmas, as fadas, os anjos e os demónios.
É só por um instante — uma aventura, por assim dizer — que depressa acaba, e
nos deixa sós, a passar o resto da vida a tentar entender esse instante, a
explicá-lo aos outros, a sonhar com ele ou a tentar repeti-lo.
Os celtas chamavam-lhe Samhain ou Beltane
— a noite em que as fadas tomavam conta da terra para a encher de caos e
encantamento. E Platão falava da divina loucura, inspirada umas vezes por
Apolo, na forma de visões sábias, por Dionísio, como loucura dos sentidos, por
Ares, através da violência descontrolada, e por Afrodite, na paixão amorosa. E
cada uma destas loucuras podia — e isso tornava-a única — mudar o curso do
mundo.
Ninguém sabe o que aconteceu no 25 de
Abril ou porquê. Vendo as reportagens, os estudos, os testemunhos,
multiplicam-se as teorias, as opiniões e a confusão. Mas algo aconteceu; algo
com que ninguém sabia lidar, e cada um tentou resolver o melhor que pôde: o
soldado que parou o tanque no sinal vermelho, a caminho da revolução, o capitão
que prendeu a autoridade máxima do país, mas cumprindo o protocolo militar.
O 25 de Abril foi o Samhain e o Beltane
português do século XX. Num país condenado a viver habitualmente, o amanhecer
de Abril foi o dia mais sensual, descontrolado e eufórico das últimas gerações.
E no meio desse êxtase há uma paixão que
ainda transborda das imagens que ficaram: o desejo. O desejo dos corpos unidos
em multidões eufóricas, de grupos a colarem pele, suor e calor no cimo de
tanques e de árvores, de homens e mulheres a abraçaram-se e a elevarem em
conjunto os braços ao céu, roçando braços, peitos, cabelos e bocas. E o desejo
é, sempre, a resposta ao medo. E esse desejo, no 25 de Abril, tornou-se uma
espingarda a ser penetrada por uma flor.
Nos livros, as revoluções fazem-se por
abstracções como a liberdade, a igualdade, a independência ou a economia. Nas
ruas e praças, as revoluções fazem-se pelo pão, pelo trabalho, pelo desejo,
pela vida, pelos outros, ou apenas pela alegria.
Jorge Palinhos
jornal Público 24.04.2014
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